Iniciativas disruptivas balançam mercados e negócios tradicionais precisam adequar produtos e serviços para o novo modelo de consumo que emerge na sociedade
De que adianta todos os apartamentos de um prédio terem uma furadeira, ou mesmo uma máquina de lavar, se esses equipamentos ficam ociosos por longos períodos? As pessoas estão se questionando sobre esse tipo de “desperdício” e, após décadas de exaltação do consumo, começam a abrir mão da posse em favor de um uso mais sustentável. O novo comportamento, que é parte do que vem sendo chamado de economia do compartilhamento – uma evolução do consumo colaborativo -, faz surgir negócios disruptivos e, ao mesmo tempo, ameaças às empresas que trabalham nos modelos tradicionais, como mostra estudo sobre o movimento realizado pelo Mundo do Marketing.
As mudanças impactam mais consideravelmente alguns setores, como o de hotelaria, com o Airbnb, e o de táxi, com o Uber. É natural que as marcas se preocupem com uma possível queda na demanda por seus produtos caso as pessoas passem a optar por compartilhar bens em vez de comprá-los. A questão que deveria estar na mente dos executivos e empreendedores, de negócios de qualquer porte, deveria ser, na realidade, como se antecipar a essa mudança e abraçá-la de modo a fornecer valor de forma mais sustentável.
Ao mesmo tempo que a economia compartilhada faz surgir ameaças também propicia oportunidades. Segundo projeções da consultoria PwC, esse novo modelo pode chegar a faturar cerca de US$ 335 bilhões até 2025. “O capitalismo está sofrendo uma transição para um modelo mais consciente, que tem em seu cerne o conceito da sustentabilidade e da relação de respeito. Muitas empresas vão se adaptar ao entender o espírito do momento, em que a reputação se torna mais importante que o crédito. O poder está sendo distribuído, estamos caminhando para uma era mais democrática e justa”, acredita Tomás de Lara, do Ouishare, comunidade global de promoção da economia colaborativa, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Avanços maiores em países desenvolvidos
O novo modelo está mais desenvolvido no Primeiro Mundo, em especial na Europa, em áreas onde os recursos naturais são escassos. “Quando se avalia a fabricação de um produto, existe todo um processo que requer gastos com água, energia e matérias-primas. Em algumas áreas do Norte, a eficiência no uso desses recursos deve ser maior. O posicionamento tem a ver com o DNA das empresa: se elas só querem crescer e ter lucro ou se querem fazer isso de forma sustentável”, acrescenta Lara.
Além da escassez, outra característica dos países desenvolvidos faz com que sua população esteja mais inclinada a abrir mão da posse. Esses grupos já tiveram acesso aos bens por um longo período e perceberam que a felicidade não está na posse deles. Eles buscam agora um resgate do sentimento de comunidade, em detrimento da relação pessoa-coisa. No Brasil, o panorama é outro, já que grande parte da população está conseguindo comprar determinadas categorias de produto pela primeira vez.
A Alemanha é um dos locais que saíram na frente nessa onda, com a oferta de plataforma para compartilhamento de carros, bicicletas e outros bens. “Para países de IDH elevadíssimo, pós-industriais, parece-me realmente mais simples mudar o paradigma. Agora que todo mundo já tem carro, as pessoas estão dispostas a abrir mão dele”, pondera Rodrigo da Silva Carvalho, Coordenador do curso de Negócios Sociais e Inclusivos da ESPM-Rio, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Plataforma brasileira ganha adesão
Ainda que em fase de maturidade anterior, os brasileiros demonstram, ao menos em parte, estarem dispostos a repensarem suas formas de consumo. A plataforma carioca Tem Açúcar? foi lançada na virada de 2014 para 2015 e, em apenas quatro meses, atraiu 37 mil usuários. O site não realiza vendas, apenas promove a troca de objetos e serviços entre pessoas que moram próximas umas das outras.
O Tem Açúcar?, assim como as demais plataformas, está baseada na confiança entre as pessoas e na reputação dos usuários, que é a nova moeda neste universo. Racionalmente, é difícil entender o que leva pessoas a confiarem em completos estranhos e emprestarem uma furadeira, por exemplo. “Nós não percebemos, mas já damos votos de confiança a desconhecidos em nosso dia a dia, como quando entramos em um táxi ou pedimos para alguém sentado ao nosso lado, na praia para olhar nossos pertences”, ressalta Camila Carvalho, Fundadora do Tem Açúcar?, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Já em Hong Kong, até os guarda-chuvas passaram a ser compartilhados, em iniciativa do negócio Umbrella Here. um dispositivo acoplado no topo da sombrinha mostre se o usuário está disponível ou não a dar uma carona a um desconhecido em meio a um temporal. A ferramenta utiliza tecnologia bluetooth e um aplicativo. Caso haja uma “vaga” na sombrinha, o equipamento fica iluminado na cor verde e, em caso negativo, vermelho.
Conhecimento também ultrapassa fronteiras
Não são apenas objetos que podem ser oferecidos no modelo da economia compartilhada. Serviços e até o conhecimento passam a ser oferecidos em plataformas. Uma delas é o Coursera, iniciativa sediada em Mountain View fundada pelos professores de ciência da computação Andrew Ng e Daphne Koller, da Universidade Stanford. A missão é possibilitar que alunos de todo o mundo tenham acesso gratuito à educação de qualidade, em aulas ministradas virtualmente. Universidades renomadas de todo o mundo já são parceiras da iniciativa.
A plataforma também conta com a colaboração dos usuários, que legendam voluntariamente os vídeos para as diversas línguas faladas pelos alunos ou estudam em conjunto, tirando dúvidas uns dos outros. Em janeiro de 2014, já haviam sido feitas mais de 22 milhões de inscrições na plataforma, de estudantes de 190 países. A rentabilização acontece por meio de doações e da venda de certificados de conclusão de curso. Já as universidades ganham ao alcançar estudantes que nunca teriam acesso a suas aulas.
A iniciativa surgiu da inquietação em relação às desigualdades da distribuição das oportunidades. “O talento é igualmente distribuído, mas as oportunidades não são. Na plataforma, as universidades têm a oportunidade de democratizar o acesso ao conhecimento e cumprir sua vocação de forma mais plena, ampliando muito o seu alcance”, explica Julia Stiglitz, Director of Business and Market Development do Coursera, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Origem do modelo
O modelo da economia compartilhada não é tão recente assim. Ele já vem sendo explorado por iniciativas e por pessoas em seus grupos familiares (e de amigos) há bastante tempo. É comum que mães repassem as roupas seminovas dos filhos pequenos, que já não cabem neles, para parentes e amigas que estão grávidas. Em locais onde vivem pessoas de baixa renda, essa prática é ainda mais comum. Muita coisa é compartilhada entre os moradores.
Na década de 1990, as primeiras plataformas online de venda de produtos pela internet começaram a abrir as fronteiras para essa onda. Elas iniciaram a construção da confiança entre pessoas – sem a participação necessariamente de marcas – na aquisição de bens, em um modelo baseado na reputação. Foram precursores eBay e Amazon.
Ganhando corpo de forma mais acelerada nos últimos anos, a economia compartilhada agora atrai empresas tradicionais, como o banco Itaú, que investiu em uma plataforma de compartilhamento de bicicletas em cidades brasileiras. “As marcas não podem ignorar a mudança no comportamento dos consumidores, mas isso não quer dizer que toda companhia tenha, ou consiga, fazer parte do movimento”, ressalta Alex Neuman, Facilitator da consultoria Hyper Island, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Além de estarem restritos a alguns setores, os impactos dos negócios também apresentam um limite geográfico. “As mudanças ainda estão muito restritas à vida urbana, mas estão sem dúvida transformando a vida nas cidades. O principal disso tudo é que os negócios estão priorizando solucionar problemas em relação a ganhar dinheiro, embora gerem lucro por fim”, conclui Lisa Bright, Creative Director da Iris Worldwide, em entrevista ao Mundo do Marketing.